Budha e a Arte de Corte e Costura
Descubra a importância da autocompaixão e como essa prática pode te ajudar a atravessar períodos difíceis da vida.
5/8/20245 min read
“Viver é um rasgar-se e remendar-se” nas palavras de Guimarães Rosa. Ninguém está imune. Ter nascido neste mundo portando um coração humano é a garantia de que estamos fadados a encontrar fracasso, tristeza e frustração. Assim, uma das questões mais básicas da vida humana é: como vivemos esse rasgar e o que é que nos remenda?
Pra mim, o rasgar sempre doeu e o remendar nunca durou pra sempre. O sofrimento naturalmente encontrou resistência e tentativa de lutar ou fugir. Na minha cabeça os badalos dos sinos de “o que eu fiz de errado?” e “como é que faço pra me consertar?”, anunciavam cadeias de pensamentos de autocrítica e ruminações sem fim.
Foram necessários muitos anos de experiência com a tristeza e a dor, para eu me dar conta de que sofrimento não é o problema. Minha experiência incluiu anos e anos sentando em uma almofada de meditação, observando minha mente e meu corpo. Dor nas costas, nas pernas, fome fora de hora e assaltos de medo sem razão.
Também incluiu me tornar mãe, parir em casa sem peridural, três meses de bebê com cólica e todos os anos subsequentes de ansiedade, insegurança e confusão pra eu me dar conta de que eu - psicóloga e meditadora “profissional” - estava pronta para ser a mãe só da criança dos meus sonhos, não da minha filha real.
Mesmo tendo vivido uma vida colorida e cheia de aventuras, vivia latente no meu coração a absoluta falta de gentileza quando o sofrimento resolvia aparecer.
Quando encontrei conceitos como auto-aceitação e auto-compaixão foi como um susto: podemos nos oferecer compaixão quando estamos em completo estado de fracasso e derrota? Oferecer aceitação e gentileza em vez de culpa e palavras duras, quando tudo, tudo cai aos pedaços e não há pra onde fugir?
A monja budista Pema Chodron disse que “‘quando tudo cai aos pedaços’ é de certa maneira um teste e também uma cura. A gente pensa que o ponto é passar no teste ou superar o problema, mas a verdade é que as coisas realmente não se resolvem. Elas se juntam e caem em pedaços. Então elas se juntam outra vez e caem aos pedaços de novo. Esse é o jeito que é. A cura vem ao deixar espaço para tudo isso acontecer: espaço para o luto, o alívio, a tristeza, para a alegria”.
Quando enfrentamos a vida com a atitude de resistência, nos tornamos auto-críticos e sentimos vergonhas pelos nossos fracassos. Tentamos evitar os sentimentos negativos e “nos consertar”. Mas esse diálogo interior de auto-criticismo acaba aumentando o sofrimento e é extremamente relacionado com doenças mentais como depressão e transtornos de ansiedade.
A prática da auto-compaixão vem ajudar a tomar um caminho diferente do habitual. Psicóloga e pesquisadora que primeira vez definiu o conceito na Psicologia, Kristin Neff afirma que “com auto-compaixão, aceitamos que o momento é doloroso e acolhemos a nós mesmos em gentileza e cuidado, lembrando que imperfeição é parte da nossa compartilhada experiência humana”. Esse conforto e aceitação amorosa permite que possamos aguentar a dor e ao mesmo tempo provê as condições de crescimento e transformação.
Um das dimensões da auto-compaixão é o estado de atenção plena (“mindfullness”) e reflete a influência pessoal do Budismo na vida de Neff, que aprendeu auto-compaixão de professores de meditação em um desses momentos que a vida havia desabado sobre ela. A atenção plena é um estado de abertura, curiosidade e flexibilidade, em que reconhecemos e podemos aceitar “o que é” e “quem somos” em determinada situação.
Quando você perceber que está sofrendo e está começando um monólogo de autocrítica, tome a oportunidade para respirar fundo e experimentar dizendo alguma coisa como: “Uau, esse é um momento difícil” ou “Nossa, estou sofrendo nesse momento” ou ”eu preferiria que não tivesse acontecido, mas a verdade é que está acontecendo”. Lembre você mesma que “isso poderia ter acontecido com qualquer pessoa” ou “isso faz parte da vida”. E ofereça suporte com palavras como “que eu possa oferecer o apoio e suporte que eu preciso nesse momento” ou “que eu possa me perdoar” ou “que eu possa me aceitar como eu sou”.
E se você se sentir bem, coloque a mão no peito enquanto conversa gentilmente com você mesma. Pode parecer estranho, mas o toque e o abraço ativam o sistema de cuidado. É como se fosse uma encruzilhada: em vez de ativar a amígdala (uma parte primitiva do cérebro) que aumenta a pressão cardíaca, adrenalina e o cortisol, preparando o corpo para lutar ou fugir, você ativa o sistema cerebral do cuidado, disponível nos cérebros dos mamíferos. Esse sistema aumenta níveis de ocitocina, relacionados com sentimentos de confiança, calma, generosidade e conexão. Afinal, por que não nos oferecer esse abraço amoroso quando mais precisamos?
Ao contrário do conceito de auto-estima que é baseado em auto-avaliações positivas em comparação com outras pessoas e “sentir-se especial” acima de outros, a auto-compaixão vai estar sempre disponível porque não depende da sua performance ou de como outros percebem você. Alem disso, enquanto os níveis de auto-estima são muito resistentes á mudança, a auto-compaixao pode ser incrementada com prática. Começamos uma relação amorosa profunda e incondicional com a totalidade do nosso ser.
Você pode estar pensando: “auto-compaixão parece uma maravilha, mas sinceramente eu não tenho condições de oferecer isso a mim mesma… Se eu tivesse, já teria oferecido”. A verdade é que é difícil para todas nós. Como crianças, absorvemos aprovação condicional dos nossos pais, professores e da sociedade em geral. Aprendemos a exilar partes de nós mesmos e administrar nossas vidas de maneira que evitamos contato com o que nos traz vergonha ou culpa. Mas a boa notícia é que podemos oferecer aceitação e compaixão para nossa falta de autocompaixão, para nossa dificuldade de mudar nossos circuitos neurais e emocionais.
Talvez você experimente uma ou duas vezes e deixe pra lá. Talvez você se lembre dessas palavras no calor do momento de dor e agarre palavras de auto compaixão como um extintor de incêndio. Mas talvez você perceba que ser compassivo e gentil com você mesma, aos poucos fortalece seu bem-estar e confiança na vida. Pesquisas indicam que mesmo 5 minutos de prática fazem diferença.
Talvez vale a pena iniciar uma relação psicoterapêutica que oferece espaço de acolhimento e consideração incondicional como primeiro passo de autocuidado e auto-aceitação. Seja como for, nessa tessitura de ser humano, todos os retalhos são bem vindos e o que alinha é compaixão.
Referências Bibliográficas:
Chodron, P. (2021). Quando tudo se desfaz: Orientação para tempos difíceis. Rio de Janeiro: Gryphus Editora.
L. Griffiths and C. Griffiths, "Unconditional Positive Self-Regard (UPSR) and Self-Compassion, the Internal Consistency and Convergent/Divergent Validity of Patterson & Joseph’s UPSR Scale," Open Journal of Medical Psychology, Vol. 2 No. 4, 2013, pp. 168-174. doi: 10.4236/ojmp.2013.24026.
K. D. Neff, “Self-Compassion: An Alternative Conceptualization of a Healthy Attitude toward Oneself,” Self and Identity, Vol. 2, No. 2, 2003, pp. 85-101. http://dx.doi.org/10.1080/15298860309032
K. D. Neff (2012). The science of self-compassion. In C. Germer & R. Siegel (Eds.), Compassion and Wisdom in Psychotherapy (pp. 79-92). New York: Guilford Press.
