A Radical Autoaceitação
Autoaceitação pode ser um conceito confuso: como aceitar o que me incomoda? Aceitar quando o que mais quero é transformar? Nesse artigo, discuto alguns aspectos do que significa autoaceitação.
5/8/20244 min read
Alguns anos atrás, durante retiros de meditação em silêncio, mesmo sem intenção, muitas ideias vinham à minha mente: receitas culinárias, artigos acadêmicos, canções e poemas sobre vida e morte…Uma das composições cheias de humor que chegou foi o "Rock do Vipassana": "seja equânime se for capaz, mas se não for, não tem problema não, a seita que salva é a aceitação".
Quando em minha mente, o show terminava e as cortinas se fechavam, a epifania que esses momentos de inspiração carregavam se perdia na impermanência da vida e eu me dava conta que havia perdido o rumo da instrução e da observação da respiração. Então, voltava para a rotina repetitiva do retiro e o frescor do momento presente.
Os retiros de meditação, como a prática espiritual em si mesma, carregam momentum de energia, exaltação, realização e também de desespero, derrota e desistência. Por muito tempo, mesmo ao contrário das constantes instruções do professor, carreguei comigo o sentimento de que se a meditação é cheia de paz, silêncio e dissolução, eu estava progredindo. Avançando de êxtase em êxtase até chegar à dissolução final do ego. Como, quando criança, cruzava o rio, saltando de pedra em pedra até a outra margem.
Foi quando, de repente, não havia mais pedras, apenas rio e mais rio, que me dei conta que tinha apostado muito na presença das pedras e menos na sabedoria de aprender a nadar. O fluxo da vida traz todo tipo de experiências e em todas elas podemos reconhecer o espaço vazio do qual se manifestam.
É nesse espaço que reconhecemos que se assenta um amor profundo e incondicional, como a rocha fundamental do rio da vida, como ar disponível mesmo durante sofrimentos mais claustrofóbicos.
Mas como acessar essa amorosidade incondicional se nossas reações instintivas são duais (aversão ao sofrimento e desejo ao prazer)? Como transcender se sofrer naturalmente dói e sentir prazer faz bem? E nisso estamos juntos todos os 7 bilhões de seres humanos no planeta, independente da nação, religião ou classe social.
Os caminhos espirituais são diversos, mas considero que ao final todos mergem em um mesmo oceano: a aceitação do que é. Do que somos. Do que os outros são. E não é que aceitar seja passivamente engolir goela abaixo qualquer coisa que acontecer. Mas aceitando, trazendo atenção presente e relaxada a nossa experiência, podemos nos conhecer e nos transformar. Psicologicamente dizendo, resistir provê mais energia ao que se resiste.
No domínio da psicoterapia, muitos psicólogos têm chegado a conclusões similares. Como Carl Rogers em sua famosa frase, em que afirma sobre o "curioso paradoxo de que quando eu me aceito, eu me transformo". Por isso Rogers propõe a "consideração positiva incondicional" como uma das condições básicas para um relacionamento psicoterapêutico. Em vez do rótulo ou do plano de mudança, a relação terapêutica deve oferecer um campo aberto e genuíno de aceitação.
Uma outra abordagem desenvolvida há 40 anos, mas que atualmente tem se tornado muito popular nos EUA e Europa é IFS (em inglês): "Sistema de Famílias Internas". O terapeuta de família e casais Richard Schwartz propôs que a mente humana é plural e não monolítica como se pensa geralmente. Ele afirma que a partir de sua própria prática, ele compreendeu que nossa mente tem "partes", algumas "exiladas" e algumas "protetoras" das partes exiladas. Quando em nossa infância, uma experiência é tão carregada emocionalmente que supera a capacidade da criança de processá-la, outras partes da nossa mente se encarregam de "rejeitá-la" e torná-la inacessível. No entanto, a parte exilada e sua "carga" de sofrimento não desaparecem e eventos na vida podem acioná-la outra vez.
O que Schwartz propõe é que não existem "partes más", todas as partes são bem-vindas. Mesmo aquelas que manifestam fortes sintomas, são partes saudáveis que tiveram que tomar esse papel para proteger a pessoa. E que além das partes da mente, ele sempre encontrou em todos seus clientes a presença neutra, calma e compassiva que pôde se relacionar com partes exiladas e protetoras em aceitação.
Aceitação não é uma outra prática que tomamos em nossos ombros, em que devemos nos aperfeiçoar para não falir. A aceitação começa quando o esforço se encerra: esforço para mudar ou para aperfeiçoar, enfim, esforço para fugir de quem já somos, da "dor e a delícia" de sermos o que somos.
Como Pema Chodron disse: "você pode ser a pessoa mais deprimida do mundo, a pessoa mais adicta no mundo, a pessoa mais invejosa do mundo. Você pode pensar que ninguém no planeta odeia mais a si mesmo quanto você. Tudo isso é um bom lugar para começar. Simplesmente onde você está: esse é o lugar para começar". Começar onde estamos porque não existe outro lugar pra começar.
Aceitação é como o caminho de volta pra casa. Como olhar no espelho com a inocência infantil, cheia de curiosidade e, como disse Fernando Pessoa, sabendo ter "pasmo essencial que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras…".
Referências Bibliográficas
Chodron, P. (2020). Comece onde você está: Um guia para despertar nosso autêntico coração compassivo. Rio de Janeiro: Sextante.
Rogers, C. R. (1997). Tornar-se Pessoa. 5a ed. São Paulo: Martins Fontes.
Schwartz, R.C. (2020). No bad parts. Louisville, CO: Sounds True.
